O futebol húngaro vive às margens das glórias do passado,
como Budapeste à beira do Rio Danubio. Parado no tempo esportivamente, por
razões que vão além do esporte, a Hungria também possui grupos que vivem uma
inércia político-cultural, como se estivessem na década de 30. Revanchismos,
preconceitos e petulância. Talvez uma herança maldita do breve período de apoio
ao Terceiro Reich. Talvez uma consequência da repressão soviética pós-Segunda
Guerra. Mas fato que o neonazismo é relevante na sociedade atual, e aparece,
como era de se esperar, nas arquibancadas.
A Hungria é um país complexo, proveniente do Império
Austro-Húngaro, e que passou por momento antagônicos em curtos períodos de
tempo, ora de progresso, ora de atraso. E isso se refletiu no futebol, onde a
Hungria passou de referência estética e de berço de equipes ligadas ao
proletariado a um país com mínima expressão no esporte e com suas torcidas cada
vez mais ligadas à extrema-direita. Embora clubes e federação sejam, ao menos
midiaticamente, efusivos contra a discriminação, não são raros os cânticos
nazistas e anti-semitas por parte de torcedores do Ferencváros ou do Újpest, os
dois maiores clubes do país, especialmente em jogos contra o MTK, clube historicamente
ligado aos judeus e à burguesia. Uma amostra de intolerância e de
desconhecimento histórico. Não apenas da história política, mas da história do
próprio clube pelo qual dizem torcer. Há quase oito décadas, os treinadores do
Ferencváros e do Újpest se uniram para resistir à causa pela qual os torcedores
atuais se identificam. István Tóth e Géza Kertész viveram uma época em que o
futebol húngaro fazia parte da elite europeia e foram assassinados por
militantes nazistas ao trabalharem para salvar a vida de centenas de
prisioneiros.
***
Em 28 de julho de 1891, nasceu István Tóth-Potya. Em 21 de
novembro de 1894, foi a vez de Géza Kertész vir ao mundo. Ambos foram jogadores
em um tempo que a Hungria era uma das referências técnicas do futebol europeu e
como treinadores, pavimentaram o caminho para a principal geração de jogadores
e treinadores do país. Como atleta, Tóth atuava como atacante e era apelidado
de Potyka. Já Kertész era meio campista. As diferenças entre os dois eram
visíveis fisicamente. Enquanto o primeiro era baixinho e rechonchudo, o segundo
era alto, esguio. De amigos no campo e fora dele, o destino os uniu até o fim.
Tóth Potya teve uma sólida carreira como jogador. Em 1912,
esteve no grupo que participou dos Jogos Olímpicos, em Estocolmo, na Suécia.
Pela seleção magyar, atuou em 19 jogos e marcou 8 gols. Como atleta só vestiu
as cores do Ferencváros e tem 128 gols em 372 partidas pelo Fradi, e conquistou
dois campeonatos nacionais (um deles, como jogador e técnico, em 26) e uma copa.
Kertész teve uma carreira um pouco mais modesta. Jogou pelo Budapesti TC
(1911-1919), pelo Ferencváros (1920-1923), onde foi companheiro de Tóth, e
partiu rumo à Itália, onde jogou pelo Spezia, na temporada 25/26 onde
também foi treinador. Pela seleção participou de uma única partida.
De 1926 a 1930, Tóth comandou o Ferencváros, e teve grande
sucesso. A equipe faturou um tricampeonato nacional (1925/26, 26/27 e 27/28) e
um bicampeonato da copa nacional (26/27 e 27/28), e em 1928 venceu a Copa
Mitropa, a primeira grande competição interclubes da Europa, ficando com o que
pode se chamar de primeira tríplice coroa do Velho Continente. Mais do que
isso, contribuiu com evoluções na forma de se trabalhar, como a aplicação da
pré-temporada, algo desconhecido na Hungria. Ele inclusive veio ao Brasil.
Naquela época, foi comum o Ferencváros realizar excursões pela América do Sul.
Por duas vezes, o time húngaro enfrentou a Seleção Brasileira. Em 1929, vitória
do Brasil por 2 a 0, no Estádio das Laranjeiras, no Rio, e em 1931, goleada
canarinho por 6 a 1, no Parque Antárctica, em São Paulo.
Tóth-Potya, sentado ao
lado do troféu, de braços cruzados, com o Ferencváros em 1927
Depois, assumiu a Internazionale (então Ambrosiana), na
temporada 31-32, substituindo o compatriota Arpad Weisz. No elenco da
Ambrosiana havia nomes como Giuseppe Meazza (ainda um garoto de 21 anos),
Hector Scarone e Giuseppe Viani. Mas o resultado do trabalho de Potyka em Milão
foi um modesto sexto lugar, o que acabou o levando à demissão.
Em compensação, quem se deu bem como treinador no Calcio foi
o amigo Kertész. O húngaro treinou diversas equipes italianas: Spezia,
Carrarese, Vezio Viareggio, Salernitana, Catanzarese, Catania, Taranto,
Atalanta, Salernitana, Littorio, Lazio e Roma. Foi uma espécie de “Rei do
Acesso”, conquistando 5 títulos de divisões inferiores: 2 da quarta divisão,
por Spezia (25/26) e Carrarese (26/27), e 3 da terceira divisão, por
Catanzarese (32/33), Catania (33/34) e Taranto (36/37).
Géza Kertész, à
direita, comandando o Catania na década de 30
De 32 a 34, Tóth voltou à Hungria para treinar o Újpest, onde
foi campeão nacional em 1933, feito que faz do treinador o único a vencer o
campeonato húngaro pelos dois arquirrivais. Posteriormente, assumiu a
Triestina, onde teve duas passagens, primeiro entre 34 a 36, e depois na
temporada 38/39. Neste meio tempo, em 37, foi treinador de um time chamado
Elektromosnál, aparentemente extinto.
Em 1943, Tóth teve novo retorno ao seu país de origem, onde
reassumiu o cargo de treinador do Ferencváros, e levou uma copa nacional.
Também fundou a Associação Húngara de Treinadores de Futebol. No mesmo ano,
Kertesz deixou a Itália e assumiu o Újpest. Mas a Europa vivia o auge da
Guerra, e o futebol, mesmo resistente, acabou ficando em segundo plano. A
Hungria era aliada nazista desde 1941, mas foi invadida em 1944, em resposta à
tentativa húngara de fazer um acordo de guerra com a Inglaterra. A volta de
ambos os treinadores à Hungria talvez até tenha sido um pretexto para tentar
socorrer um país em ruínas. Tóth trabalhou duro na resistência ao Nazismo,
contribuindo para a fuga de centenas de prisioneiros ao lado de Géza, que já
havia sido militar. Os dois ajudaram a criar uma rede clandestina que assentava
judeus e outros prisioneiros em locais seguros. Reza a lenda, que Géza, fluente
em alemão, assim como Tóth, chegou a invadir um gueto vestido como militar da
SS para salvar pessoas.
Em 1944, a operação dos dois treinadores foi delatada por
alguém, e ambos foram presos pela Gestapo, a polícia secreta de Hitler. Donos
de uma história respeitável no futebol, tiveram o pior fim ao resistir contra a
barbárie. Foram mortos pelas mãos dos próprios conterrâneos, membros do
Partido da Cruz Flechada, liderado por Ferenc Szálasi, e que foi responsável
pela morte de aproximadamente 15 mil judeus. Tóth e Géza foram assassinados em
6 de fevereiro de 1945, em frente ao Castelo Real de Budapeste. Apenas sete
dias depois, o Exército Soviético invadiu a capital húngara. Foi o fim do
Terceiro Reich na Hungria, destino que em breve se estenderia ao restante da
Europa. Mas não foi o fim da intolerância e da sombra fascista que insiste em
sobreviver e que mata homens como Tóth-Potya e Kertész.
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