Nós,
brasileiros, estamos acostumados às bizarrices que a cartolagem do futebol
nacional criou ao longo dos anos. Mas talvez, nada seja mais surpreendente e
inexplicável do que a Copa João Havelange. É difícil de entender até mesmo para
quem viveu de perto aquela competição, que oficialmente, foi o Campeonato
Brasileiro de 2000. Mas é curioso como consequências possuem causas tão
distantes entre si. Tudo começou em 1999, com a adesão absurda do sistema de
promédios para o rebaixamento daquele ano. E você vai conhecer todos os
detalhes da Copa João Havelange, nesta reportagem especial.
O
promédio brasuca
Se
há algo que jamais teve sentido algum em se realizar num campeonato com acesso
e descenso, é o chamado promédio. Utilizado em alguns países latinos, é muito
difundido na Argentina. O promédio argentino consiste em somar todos os pontos
das últimas três temporadas e dividi-los pelo número de jogos que a equipe fez
nestes campeonatos. Os clubes com as piores médias desse índice são rebaixados
diretamente. Esse método é usualmente associado à proteção dos clubes grandes,
embora recentemente tenhamos visto casos como o do River Plate. Em 99, essa
ideia passou a vigorar no Brasileirão.
Só
para termos uma ideia de quão estranho é esse tipo de regulamento, o Gama, um
dos rebaixados, terminou a competição em 15º, com 26 pontos, 9 acima do
lanterna, Sport, que NÃO caiu. Mas vamos explicar o método utilizado pela CBF.
Como o número de jogos da primeira fase diminuiu de 23, do ano anterior, para
21 partidas, a fórmula para o cálculo era a seguinte:
Média
de pontos = pontuação de 1998 ÷ 23 (jogos) + pontuação de 1999 ÷ 21 (jogos) ÷ 2
(temporadas)
Sim,
amigos. Não bastava bons jogadores e um grande treinador. Era preciso ter um
matemático na comissão técnica da equipe. A fórmula mudava para as equipes
recém-promovidas (Gama e Botafogo-SP):
Média
de pontos = pontuação de 1999 ÷ 21 (jogos)
Ao
término da primeira fase, em novembro, as médias deveriam estar assim (do menor
para o maior):
1 -
Botafogo-SP: 1,000
2 -
Juventude: 1,089
3 -
Paraná: 1,093
4 -
Botafogo-RJ: 1,178
5 -
Internacional: 1,219
6 -
Gama: 1,238
Ou
seja, Botafogo-SP, Juventude, Paraná e Botafogo-RJ estariam rebaixados para a Série
B de 2000. Isso, se em outubro, o Superior Tribunal de Justiça Desportiva não
tivesse tomado uma polêmica decisão que mudaria não só os rumos do campeonato
daquele ano, como de todo o futebol brasileiro.
O
caso Sandro Hiroshi
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Milton Trajano/Placar |
No
Campeonato Paulista de 99, um jovem atacante despontava para uma promissora
carreira. Era Sandro Hiroshi, um tocantinense de traços orientais, que na
ocasião, era jogador do Rio Branco de Americana. Na sequência do estadual, foi
contratado pelo São Paulo para formar dupla de ataque com França. Foi a partir
desta transferência, que os problemas começaram a aparecer. Sandro foi
contratado pelo Rio Branco vindo do Tocantinópolis. Com sua ida para o tricolor
paulista, o time tocantinense queria parte no valor da negociação, como clube
formador. Porém, o Rio Branco alegava ter assinado com o jogador ainda como
juvenil. O próprio Sandro Hiroshi afirmou em entrevista à revista Placar que
jamais teve vínculo algum com o Tocantinópolis, apesar de ter jogado alguns
campeonatos de base. Afirmou que sequer treinava no clube. A batalha judicial
fez a CBF bloquear o passe do jogador, não permitindo que ele se transferisse,
mas dando o aval para que o mesmo continuasse a jogar, assim como a Federação
Paulista de Futebol.
No
dia 4 de agosto, na 3 ª rodada do Brasileirão, o São Paulo encaçapou o
Botafogo-RJ por 6 a 1. Dias depois, o clube carioca entrou com um pedido de
anulação da partida, alegando que o bloqueio tornava o jogador irregular (algo
contraditório, afinal, a própria CBF já havia permitido a atuação do atleta).
Entretanto, o caso foi julgado pela Justiça Desportiva apenas em 19 de outubro.
A decisão da Comissão Disciplinar foi favorável ao Glorioso, atribuindo-lhe os
três pontos daquela partida, e retirando o mesmo número de pontos do São Paulo.
O tricolor ainda tentou recorrer alegando que outros atletas de outras equipes
também estavam com o passe bloqueado, e jogando normalmente. O argumento foi
ignorado e a decisão foi mantida.
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Jornal do Brasil - 19/10/99 |
Depois,
o Internacional, com chances reais de rebaixamento, viu no imbróglio uma
brecha, e também buscou recuperar os pontos do empate com o São Paulo. E
conseguiu. Ganhou 2 pontos sem nenhuma justificativa. Curioso notar que Sandro
Hiroshi atuou por 16 partidas durante o torneio (e marcou apenas um gol,
justamente contra o Botafogo). Se o São Paulo fosse punido de maneira
equivalente aos dois primeiros casos, fatalmente terminaria rebaixado. Caso o
tricolor não tivesse sido julgado, e seus pontos não tivessem sido
transferidos, o Botafogo teria sido rebaixado no lugar do Gama e o Inter seria
mantido na elite. Em uma segunda hipótese, se apenas o Glorioso tivesse ganho
estes pontos na justiça, quem sofreria o rebaixamento era o Internacional.
No
dia 3 de novembro, o Superior Tribunal de Justiça Desportiva da CBF condena em
definitivo o São Paulo pela escalação do atacante Sandro Hiroshi na vitória
sobre o Botafogo-RJ por 6 a 1, e dá os pontos do jogo ao Botafogo, o que causa
o rebaixamento do Gama. Antes da decisão, os jogadores do São Paulo chegaram a
ensaiar uma greve caso Hiroshi fosse julgado. "Se um presidente que roubou
nosso país pode voltar a disputar eleições, porque o Sandro não pode ser
perdoado", questionou Raí. Carlos Augusto Montenegro, dirigente do
Botafogo, deixou claro como o que acontece dentro de campo no Brasil, pouco
vale. "Perdemos no campo de 6, mas aqui ganhamos de 7", em referência
aos sete votos a favor do clube carioca.
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Documentação apresentada pelo Botafogo. |
Documentação
apresentada pelo Botafogo
Com
a decisão do STJD, o promédio ficou assim:
1 -
Botafogo/SP: 1,000
2 -
Juventude: 1,089
3 -
Paraná: 1,093
4 -
Gama: 1,238
5 -
Botafogo-RJ: 1,249
6 -
Internacional: 1,267
Como
era de se esperar, o caso envolveu grande atuação da imprensa. E enquanto se
investigava as transferências de Sandro Hiroshi, a Folha de São Paulo publicou
uma reportagem em que denunciava que o atacante havia adulterado sua idade, e
que jogava desde 1994 com documentação falsa. O popular "gato".
Sandro nasceu no dia 19 de novembro de 1979, e quando tinha apenas 14 anos,
teve a documentação alterada em 42 dias, modificando o ano de nascimento para
1980. Como o julgamento do caso do bloqueio do passe e a denúncia de
adulteração de idade apareceram praticamente juntas, criou-se o mito de que o
"gato" teria sido preponderante no desfecho do processo judicial. O
atacante foi punido com 180 dias de suspensão, e posteriormente julgado pela
Justiça por falsidade ideológica.
O
caso teve uma repercussão tão grande, que atravessou fronteiras. Pela Copa
Mercosul, o São Paulo empatou com o Boca Juniors por 1 a 1 em 18 setembro de 99. Hiroshi estava no banco
durante a partida do Morumbi, e o clube xeneize, eliminado, buscou encontrar
irregularidades em outras equipes para tentar uma vaga na fase seguinte da
competição, no tapetão. O Boca Juniors terminou a fase de classificaçao do
torneio sul-americano com dez pontos, na segunda colocaçao do Grupo C, empatado
com o Corinthians, do Grupo B, como terceiro melhor 2º colocado. Ambos tinham o
mesmo número de vitórias e saldo de gols. O desempate foi decidido em um
sorteio na sede da Conmebol, e o Timão levou a melhor. A CBF enviou para a
entidade sul-americana todos os documentos do atleta, garantindo sua
regularidade, explicitando a total incoerência nas decisões tomadas durante o
Brasileirão. Lembre-se: segundo a documentação apresentada pelo Botafogo,
Hiroshi estaria irregular entre os dias 13 de julho e 18 de outubro!
Revoltado,
e com certa razão, o Gama resolve melar tudo
Com
o rebaixamento decretado, a diretoria do Gama resolveu entrar na Justiça Comum
para evitar o descenso. Com ligações importantes com membros da política, o
clube candango decidiu enfrentar de peito aberto a CBF. No final de novembro, o
PFL-DF (atual DEM) e o Sindicato dos Técnicos do DF, representados pelo então
senador pelo PSDB, José Roberto Arruda, entram na Justiça Comum, que concede
liminar garantindo o Gama na série A. Esse foi o pontapé de um dos maiores
imbróglios jurídicos da história do esporte.
No
início de fevereiro de 2000, o Tribunal Regional Federal-DF nega recurso do
Botafogo para cassar a liminar que mantinha o Gama na série A. No final do mês,
foi a vez da CBF ter recurso negado pela segunda Turma do TRF-DF, desta vez
pela liminar que garantia o Gama na Copa do Brasil. A entidade máxima do
futebol brasileiro seguiu sofrendo derrotas nos tribunais. Em março, o Tribunal
Federal de Recursos do DF rejeita recursos da CBF contra as duas liminares
anteriormente descritas.
Com
um desfecho imprevisível, os times grandes do país começam a se articular. No
dia 8 de maio, o Clube dos 13 define que iria criar uma liga, sem o Gama. A
ideia era assumir de vez o controle do futebol brasileiro. A CBF sinaliza
apoio. Na época, o presidente do Gama, Agrício Braga Filho declarou em
entrevista: "Estamos em contato com a CBF, a Federação Carioca e o
Botafogo em busca do consenso. Nossa proposta é um brasileiro com 21
clubes". No dia 31, nova derrota da CBF, com recurso negado pelo Superior
Tribunal de Justiça.
Nisso,
já haviam se passados 6 meses do ano, e nada havia sido resolvido. A FIFA
resolveu intervir, inclusive ameaçando a CBF de suspensão em caso de não
resolução do problema. Mas a Justiça ainda não tinha julgado o caso em todas as
instâncias, o que impedia a entidade de realizar o Campeonato Nacional de 2000.
A solução encontrada pelo então presidente Ricardo Teixeira, foi entrar em
acordo com o Clube dos 13. Dessa maneira, o grupo dos grandes clubes
brasileiros organizaria um torneio com a chancela da CBF chamado Copa João
Havelange em homenagem ao ex-presidente da FIFA. Isso, claro, sem o Gama. A
FIFA havia punido o Gama no fim de junho, suspendendo o clube, por não aceitar
que os clubes ingressem na Justiça Comum. No final das contas, a entidade
máxima do futebol recuou. Mas o clube brasiliense insistiu em lutar por seu
direito de jogar, e em 10 de julho foi incluído via liminar no novo
Brasileirão. CBF e Clube dos 13 tentaram reverter a decisão em novo recurso no
TRF-DF, mas não obtiveram êxito.
A
Copa João Havelange
Finalmente,
no dia 20 de julho de 2000, CBF, Clube dos 13 e Gama entram em um acordo e
definem que a primeira divisão nacional contaria com 25 clubes, incluindo o
Gama, o Fluminense (campeão da série C, gerando assim o famoso bordão
"Pague a série B", utilizado por torcedores rivais), o Bahia e o
América-MG (ambos eliminados da série B nacional do ano anterior) e o Juventude
(rebaixado à série B em 99). Assim como na famosa Copa União de 87, foi feito
um acordo elitista, direcionado e sem nenhum critério técnico, o que obviamente
desencadearia uma nova guerra de liminares.
Assim,
ficou decidido que as três divisões nacionais seriam unificadas em um único
torneio, dividida em quatro módulos diferentes. Cada módulo tinha um
regulamento e número de participantes diferente entre si. Entretanto, todos os
clubes de todos os módulos tinham chance de se tornarem campeões nacionais,
graças ao cruzamento destes módulos na fase final. É importante destacar que
oficialmente não existiram séries B e C no ano de 2000, embora as divisões da
pirâmide do ano de 99 tenha definido indiretamente os participantes de 2000 e o
resultado final de 2000 tenha sido determinante na definição do Campeonato Brasileiro
de 2001, já restabelecido. Ou seja, não é absurdo nenhum que Paraná Clube e
Malutrom sejam considerados campeões da série B e C do Brasileirão,
respectivamente, mesmo que, oficialmente, não seja assim.
O
Módulo Azul seria o equivalente a Série A e foi formado pelos 20 clubes que
ficariam na primeira divisão do ano anterior, e os cinco clubes repescados,
como citado anteriormente: Gama, Fluminense, Bahia, América-MG e Juventude. O
Módulo equivalente a série B foi formado por 36 clubes, os 15 que deveriam
estar na série B normalmente, mais outras 21 equipes convidadas com o aval da
CBF. A terceira divisão nacional foi dividida em duas. No Módulo Verde eram 28
clubes, e no Módulo Branco outros 27.
Os
cruzamentos
Qualquer
semelhança com a Copa União de 87 não é mera coincidência. O Clube dos 13, que
naquela ocasião era permanentemente contra o cruzamento entre os módulos, em
2000 se mostrou ser tão desorganizada quanto a CBF. Sem ter o poder de definir
os acessos e descensos, foi instituído que todos os times dos quatro módulos
tinham chances de serem campeões brasileiros de 2000, mesmo que na teoria,
estivessem em divisões diferentes, algo corroborado na distribuição de vagas
realizada para o Brasileirão de 2001 (como você verá ainda neste texto).
Para
a fase final, ficou definido que disputariam os 12 primeiros do Módulo Azul, os
3 primeiros do Módulo Amarelo (Paraná, São Caetano e Remo), e o campeão do
Módulo Verde e Branco (Malutrom). Já nas oitavas, Malutrom e Remo foram
eliminados por Cruzeiro e Sport, respectivamente. Enquanto o Paraná passava
pelo Goiás e o Azulão, comandado por Jair Picerni, surpreendia o Fluminense.
"É óbvio que todo mundo disputa pensando em chegar a uma final. Mas a
gente só foi crer que podia chegar quando a gente eliminou o Fluminense no
primeiro mata-mata. Foi aí que a gente começou a fomentar aquela situação de
poder chegar a final do Campeonato Brasileiro" disse o atacante Adhemar,
com exclusividade para a nossa reportagem.
O jogador desembarcou em São Caetano do Sul no final de 96, viu o time quase
cair para a quarta divisão paulista, e foi um dos líderes da equipe, ajudando o
clube a sair da série A-3 do Campeonato Paulista para a elite do Brasileirão.
Nas
quartas-de-final, o tricolor da Vila Capanema caiu diante do Vasco em duas
partidas muito polêmicas. Do outro lado da chave, o São Caetano eliminava mais
um gigante do futebol brasileiro, o Palmeiras, em duas partidas eletrizantes e
com muitos gols. Nas semifinais, o Vasco, liderado pela dupla de ataque formada
por Romário e Euller, passou pelo Cruzeiro, a equipe com a melhor campanha até
então. E olha, que não faltou turbulência nos bastidores do Vasco. Após o
empate no jogo de ida, o técnico Oswaldo de Oliveira deu folga ao elenco. Ainda
nos vestiários do Mineirão, Eurico contraria o treinador e muda a programação,
alegando que a folga atrapalharia a concentração do time para a final da Copa
Mercosul diante do Palmeiras, dali a quatro dias. Nesse cabo de guerra,
estourou o lado mais frágil. Oswaldo foi demitido, e Joel Santana assumiu a nau
vascaína, garantindo o título da competição continental e a vaga na final do
Brasileirão.
No
meio de tudo isso, o São Caetano já tinha se tornado o novo xodó do torcedor
brasileiro. Ninguém esperava uma nova surpresa, mas Adhemar estava endiabrado,
e nos dois jogos eliminatórios diante do Grêmio, marcou três gols essenciais
para a classificação de uma das maiores zebras da história do futebol nacional.
"A cumplicidade que cada jogador tinha com seu companheiro... Éramos uma
família. às vezes íamos em três ou quatro famílias pro shopping, pessoal ia
brincar com os filhos, as mulheres iam passear. E isso fez com que cada um se
doasse um pouquinho mais dentro de campo", respondeu Adhemar ao ser
perguntado sobre o segredo daquele elenco do São Caetano.
A
final emocionante e trágica
Os
jogos da final ficaram marcados para os dias 27 e 30 de dezembro. De um lado,
um Golias do futebol nacional. Do outro, um surpreendente Davi. O jogo de ida
aconteceu no Palestra Itália, estádio do Palmeiras. Sem favoritismo, o São
Caetano aproveitou o desfalque de Juninho Pernambucano e se lançou ao ataque.
Wagner pela esquerda toca para dentro da área, e César manda um forte chute de
canhota para abrir a contagem. A pressão seguiu e Hélton ia segurando o time do
São Caetano do jeito que dava. Mas aos 27 minutos, a bola chega nos pés de
ninguém menos que Romário. Dentro da área. Ali, fica difícil, e o Baixinho
deixa tudo igual. Na segunda etapa, o Azulão atacou o Vasco de tudo que é
maneira. Foi parado pela trave, por Hélton em noite iluminada, e por um pênalti
de Odvan em Wagner, não marcado por Carlos Eugênio Simon.
"Foram
várias chances, bola no travessão, bola na trave, bola que passou raspando,
bola que o Hélton pegou. Naquela partida eu fiz o meu melhor. A gente sabia que
o Vasco tinha uma excelente equipe. Pra resumir, o resultado não foi justo pelo
número de finalizações que tivemos, mas o Vasco tinha o Romário, né?",
destacou Adhemar.
Para
o jogo da volta, em um belo e ensolarado sábado, o Vasco tinha a vantagem do
empate sem gols. E o Azulão, que não tinha nada a perder partiu pra cima do
Gigante da Colina. Em 23 minutos, o cenário era favorável ao pequeno clube do
ABC Paulista, que já havia carimbado a trave com Adhemar. Romário, sentindo uma
fisgada na coxa, deixa o campo para a entrada de Viola. Foi então que a
torcida, de maneira literal, veio abaixo. Em uma pequena discussão na
arquibancada de São Januário superlotado, o alambrado cedeu, e centenas de
torcedores ficaram amontoados à beira do gramado. Mais de 150 feridos, com três
deles em estado grave.
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Alexandre Battibugli/Placar |
"Eu
pensei que fosse algo mais suave. Não deu pra ver. A pilha de gente era muito
grande. Uma imagem que me marcou muito foi de um pai carregando uma menina, e a
menina estava com as costas perfurada e jorrava muito sangue", lembra
Adhemar. Enquanto ambulâncias e um helicóptero do Corpo de Bombeiros retiravam
as vítimas, discutia-se em campo o prosseguimento da partida. Os jogadores
aguardavam o desfecho, atônitos. Eurico Miranda fazia questão de tentar
"limpar" o campo de jogo, e declarava a quem quisesse ouvir:
"Vamos recomeçar o jogo". O árbitro Oscar Roberto Godói aguardava
para tomar a decisão mais sensata. O comando da polícia concordava com o
dirigente e então deputado federal. Para os homens da lei, o cancelamento da
partida poderia gerar consequências ainda mais trágicas, com uma possível
revolta da torcida. Entretanto, o governador do Rio de Janeiro, Anthony
Garotinho, ligou pessoalmente ao comandante dos Bombeiros, o coronel Paulo
Gomes, e determinou o fim da partida. "É melhor adiar um jogo do que
perder uma vida. Imagine uma torcida enfurecida caso o São Caetano fizesse um
gol?", declarou o político. Adhemar concordou com o ex-governador e
reforçou que encerrar a partida foi a decisão correta: "As duas equipes
estariam muito erradas em tentar continuar aquela partida. Sei lá, de repente
poderíamos ter ganho ou ter perdido, mas não era o momento pra continuar uma
partida".
Indignado,
Eurico vociferava contra o governador que chegava de helicóptero ao estádio
para assegurar que tudo aconteceria de acordo com sua decisão. E chegou ao
ápice da falta de responsabilidade ao ordenar que os jogadores voltassem a
campo, pegassem o troféu e fizessem a mais vergonhosa volta olímpica possível.
"O Vasco é o legítimo campeão! Tem todos os méritos. Como o 0 a 0 era
nosso e o jogo acabou, nada mais natural que a volta olímpica". Sem a
mesma tarimba de dirigente de time grande, o vice-presidente do São Caetano,
Luiz de Paula, comentava resignado: "Se ele diz que o Vasco é campeão, o
São Caetano se contenta com o vice. Vamos comemorar do mesmo jeito". O
presidente da Federação Carioca, o folclórico Caixa D'Água, considerava a
decisão mais plausível dividir o título de campeão entre as duas equipes.
Talvez fosse o final mais coerente com o desastre que foi a Copa João Havelange
do começo ao fim. Enquanto isso, nenhum dirigente do Clube dos 13, a entidade organizadora
do torneio, deu as caras.
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Alexandre Battibugli/Placar |
Romário
100% contra um São Caetano meia-bomba
Após
o desastre, era hora de decidir o rumo do campeonato. Rapidamente, se espalhou
a ideia de dividir o título entre as duas agremiações. Foi preciso que Luiz
Zveiter, presidente do STJD na época (AQUELE que anulou 11 jogos no Brasileirão
de 2005) assumisse a bronca. Zveiter definiu que uma nova partida seria
realizada, dando entrevistas para toda a imprensa. Em suas palavras,
"forçamos a decisão que consideramos a mais justa", acatada
prontamente pelo Clube dos 13.
Definida
a data da final (18 de janeiro), o São Caetano precisava correr para remontar a
equipe. Vários jogadores já tinham fechado com outros times ou estavam sem
contrato. A presença do craque Adhemar, acertado com o Stuttgart, da Alemanha,
foi confirmada poucos dias antes do jogo. "Eu já tinha ido pra Alemanha,
já tinha acertado toda minha transferência pro Stuttgart. Alguns outros ja
tinham sido negociados. Então foi uma partida diferenciada, com jogadores já
pensando nos outros contratos. E é diferente. O cara fala que entra em campo e
tá focado na partida. Mas passou a semana inteira discutindo um contrato e na
hora do jogo você tem que estar focado. Foi uma coisa que atrapalhou muito. Mas
faz parte, isso é o futebol brasileiro e a gente tem de aceitar". O
zagueiro Daniel e os reservas Zinho e Leto não tinham contrato até a véspera da
finalíssima. Na verdade, não se sabe se foi efetivado algum contrato realmente.
Claudecir possuía um pré-contrato com o Palmeiras desde outubro de 2000.
Japinha, já negociado com o Bahia, chegou a dizer que o time do ABC era
passado. "Disse aquilo antes da decisão do STJD pela realização do
terceiro jogo. Não sabia que teria que jogar de novo".
Toda
a partida foi realizada às pressas. O Maracanã, em meio a uma de suas muitas
reformas, precisou ter a grama plantada a poucos dias da final, ficando rala e
cheia de areia. E após a justificável cobertura da imprensa, em especial da Globo,
que tratava Eurico como um verdadeiro ditador, o dirigente preparou uma das
suas. Sem nenhuma autorização, estampou a logo do SBT, na época principal rival
da emissora carioca, na frente e nas costas da camisa vascaína. Segundo o
mandatário, tudo não passou de uma homenagem a Sílvio Santos. Ao ser informado
do ocorrido, Sílvio, que estava nos EUA pediu: "guarda essa fita que eu
quero ver quando chegar".

Com
a bola rolando, Juninho Pernambucano colocou o Vasco na frente aos 30 minutos
com um chute no ângulo, após receber lindo passe de Romário. Seis minutos
depois, Adãozinho arriscou de longe e empatou o jogo para o valente São
Caetano. Mas ainda na primeira etapa, nova jogada coletiva do Vasco, que acaba
em passe de Juninho Paulista e gol de Jorginho Paulista. No fim do primeiro
tempo, Adhemar alertava: "A nossa condição física não é das melhores.
Temos que tocar mais a bola e sair conscientemente para o contra-ataque".
Mas
não houve reação do Azulão. Aos 8 da segunda etapa, Juninho Paulista encontra
Romário na área. Ele vence o zagueiro Serginho e define a partida, e enfim,
conquista seu primeiro título brasileiro. O consolo do Azulão foi a calorosa
recepção em São Caetano do Sul feita por mais de 7 mil torcedores, que
acompanharam a equipe em carreata até o estádio Anacleto Campanella.
A
irregularidade do Vasco
Em
25 de julho de 2000, ainda antes do início da competição, o Clube dos 13
anunciou a criação de um Tribunal de Penas para o julgamento de casos de
indisciplina. Entretanto, esse órgão foi extinto por pressão do STJD, que
considerava que a entidade não tinha a competência para julgar esses casos.
Além de todos os problemas flagrantes da final, já descritos anteriormente, a
Folha de São Paulo, em reportagem assinada por Fernando Mello no dia 21 de
março de 2001, descobriu que o Clube dos 13 encobriu uma irregularidade do
lateral-esquerdo Jorginho Paulista, do Vasco da Gama.
O
jogador vascaíno atuou em 4 partidas, contra Gama, Goiás, Flamengo e Coritiba,
sem estar regularizado, pois a Udinese, clube anterior do lateral, ainda não
havia liberado a documentação do jogador, que na época, sofria uma acusação por
uso de passaporte falso. Jorginho ainda atuou outras 10 partidas e marcou um
dos gols do Vasco na final contra o São Caetano.
Em
entrevista à Folha, o presidente do Clube dos 13, Fábio Koff admitiu que a
entidade tinha conhecimento da irregularidade: "O que soube, por
informações extra-oficiais, é que ele jogou algumas partidas sem estar
devidamente regularizado. Mas não sei por quanto tempo isso durou e, se no
próprio curso da competição, o Vasco não regularizou sua situação. Não tomamos
nenhuma atitude porque não éramos órgão judicante, isso não era competência
nossa. Deixamos de sê-lo com a exclusão do Comitê de Penas. Toda a postulação
deveria ter sido encaminhada ao TJD. Não éramos nem instância inferior, só
podíamos aplicar a suspensão automática em caso de cartões amarelos ou
vermelhos. O que recebemos foi um ofício de pessoa física do advogado Paulo
Goyaz (vice-presidente do Gama) pedindo a punição ao Vasco também por ofício.
Não houve recurso formal de um clube a nós. Houve solicitação de informações,
uma consulta. Respondi que o acesso a esta informação deveria ser obtido na
CBF. Encaminhamos o caso ao nosso Departamento Jurídico, mas entendemos que o
prazo para reclamar, de cinco dias úteis após o jogo, já estava esgotado".
Mas
por qual razão outros clubes interessados em uma punição ao Vasco recuariam?
Segundo a Folha, por medo de Eurico Miranda, vice-presidente do Clube dos 13, e
curiosamente, também um dos pivôs da polêmica da Copa União de 87.
Quem
foi o artilheiro?
Em
qualquer relato histórico sobre a história do Campeonato Brasileiro, existirão
dezenas, ou até centenas de asteriscos. Um deles é em relação ao artilheiro da
Copa João Havelange. Parte da imprensa considera apenas os números do Módulo
Azul, conferindo a Magno Alves do Fluminense, Dill do Goiás e Romário do Vasco,
todos com 20 gols, o título de artilheiro do Brasileirão de 2000. Oficialmente,
Adhemar, do São Caetano, é o grande artilheiro por ter marcado 22 gols durante
toda a Copa João Havelange - 15 no Módulo Amarelo e incríveis 7 gols na fase
final. Porém, a CBF jamais premiou o jogador. "Não ganhei nada! Foi tudo
muito conturbado! Não me deram troféu. Eu sou o artilheiro do asterisco. Todo
ano que começa o Campeonato Brasileiro meu nome fica lá, aí colocam o Romário,
o Dill e o Magno com 20 gols. Aí eu vejo assim: puxa, era tão difícil fazer gol
no módulo amarelo, aí a gente passa pro módulo azul e minha média aumentou. A
CBF não me deu nem um papelzinho. Aliás, eu gostaria de ser reconhecido nem que
fosse com um certificado".
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Carlos Moraes/Placar |
Os
beneficiados e os prejudicados: as consequências para 2001
Em
2001, o futebol brasileiro voltou para as mãos da CBF. O Campeonato Brasileiro
começou praticamente do zero, com diversas distorções, apesar de algumas
decisões terem sido tomadas através do critério técnico, mesmo que isso não
tenha acontecido de forma oficial. Na série A, foram definidos 28 times. Os 25
que disputaram o Módulo Azul (e isso inclui Fluminense, Bahia, América-MG e
Juventude), somados ao Paraná e São Caetano (campeão e vice do Módulo Amarelo)
e o Botafogo de Ribeirão Preto, um dos rebaixados no Brasileiro de 99, junto
com Gama, Juventude e Paraná Clube. Portanto, na prática, Paraná e São Caetano
"subiram de divisão" no campo. O Botafogo-SP acabou rebaixado ao
Módulo Amarelo mas foi repescado, assim como o Juventude, que sequer teve o
rebaixamento concretizado, e o Fluminense, que passou da Série C para a A sem
disputar a segunda divisão.
Para
a disputa da Série B, também houve confusão e privilégios. O tradicional
Nacional de Manaus foi convidado mesmo tendo sido um dos piores times da
terceira divisão de 99 e feito péssima campanha na João Havelange, graças ao
lobby do senador Gilberto Mestrinho (PMDB-AM). O mesmo ocorreu com a Anapolina,
que contou com a ajuda do senador Maguito Vilela (PMDB-GO). O Malutrom foi
convidado pelo título no Módulo Verde e Branco. O Brasil de Pelotas, deixado de
fora, ainda tentou melar o torneio, mas teve liminar cassada, já com o torneio
em andamento. O Remo, 3º colocado do Módulo Amarelo e eliminado nas
oitavas-de-finais da Copa João Havelange, não recebeu o privilégio de jogar a Série
A, e permaneceu na segunda divisão.
O
fim da virada de mesa
É
sempre necessário tirar boas lições dos erros. E aparentemente, a elite do
futebol brasileiro deixou a "virada de mesa" para trás após a Copa
João Havelange. Desde 1971, quando foi instituído o Campeonato Brasileiro,
jamais um regulamento foi repetido à risca por dois anos consecutivos. A partir
de 2003, o Brasileirão passou a ser disputado através do sistema de pontos
corridos, e não possui mudanças no regulamento desde o ano de 2005, quando se
estabeleceu o número atual de 20 clubes.
*Para
esta reportagem foram consultados os arquivos do Jornal do Brasil, da Folha de
São Paulo e da Revista Placar.
Reportagem:
Yuri Casari
Colaboração
e revisão: André Carlos Zorzi