3 de
outubro de 2005. Como em boa parte dos programas esportivos realizados na
segunda-feira, logo após os jogos do final de semana, a mesa redonda da
emissora Primocanale, da cidade de Gênova, apresentava ásperas discussões. Na
ocasião, Franco Scoglio, ex-treinador do Genoa, era um dos convidados e
participava de um debate com o então presidente do clube, Enrico Preziosi (que
ainda é mandatário da equipe). Na época, o Genoa vagava pela Série C italiana.
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Porque eu deveria discutir com ele? Eu sou o presidente!
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Veja, isso mostra que ele não quer um diálogo. Ele quer um monólogo.
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Diálogos são feitos com a torcida, não com um ex-treinador. Que autoridade tem
para falar do Genoa? Caro Scoglio...
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Quando se dirigir a mim, me chame de professor. Porque quando me dirijo a você,
lhe chamo de presidente!
A
conversa era dura. O apresentador Giovanni Porcella dá sequência, acalmando os
ânimos. De repente, Scoglio, conhecido como "O Professor", pende a
cabeça para trás, e fecha os olhos para não mais abrir. Um ataque cardíaco
fulminante vitimou o treinador de 64 anos, ao vivo, diante dos telespectadores.
Surpreendente, se isso não fizesse parte de uma macabra profecia.
Apesar
de ser lembrado pelo insólito episódio de sua morte, Franco Scoglio foi um
treinador de relativo prestígio no Calcio. Nasceu em Lipari, província de
Messina, em 2 de maio de 1941, e teve uma infância pobre. Segundo ele, "a
pão e cebola". Formado em educação física, deu aulas em escolas, razão
pela qual passou a ser chamado de "Il Professore" durante sua
carreira. Apaixonado por futebol, chegou a atuar pelo Palmese e por uma equipe
de Lipari, e começou a treinar equipes juvenis do Reggina em 72. A partir daí,
rodou por equipes das divisões inferiores da Itália. O Gioiese foi sua primeira
equipe profissional, mas foi na sua segunda passagem que conquistou sua
primeira taça: o Campionato Interregionale de 81/82. Em uma de suas passagens
pelo Messina, descobriu o atacante Salvatore Schilacci, futuro artilheiro da
Copa do Mundo de 1990. Lá, venceu a série C de 86.
Mas
é no Genoa que Scoglio ganhou notoriedade, e principalmente, o carinho dos
torcedores. Sentimento respondido reciprocamente. É ele o comandante do último
título nacional da equipe, a série B na temporada 88/89. Na temporada seguinte,
foi um dos responsáveis pela manutenção na série A, terminando o campeonato em
uma honrosa 11ª posição. Certa vez, disse ao amigo de longa data, Nicola Merlo: "Morirò
parlando del Genoa" (Morrerei falando do Genoa). Nicola certamente não
imaginou o que aconteceria com o amigo anos mais tarde.
Após
trabalhar em diversas equipes da primeira e segunda divisão italiana, assumiu o
comando da Tunísia, onde alcançou a 4ª colocação na Copa Africana de Nações de
2000, e contribuiu para a classificação do país para a Copa de 2002. Segundo
Mariano Bruno, ex-prefeito de Lipari, Scoglio tinha duas paixões: O Genoa e a
África. E foi para salvar o Genoa da série C que largou o sonho de disputar uma
Copa do Mundo. E trouxe consigo 5 tunisianos: o goleiro Chokri El Ouaer, o
zagueiro Khaled Badra e os meias Imed
Mhadhebi, Raouf Bouzaiene e Hassem Gabsi. E ao justificar as contratações,
virou motivo de piada. "Bouza é taticamente parecido com Maldini, Gabsi é
o Di Livio africano e Badra só perde para Baresi".
Em
2002, treinou a Líbia, mas durou pouco tempo. Não conseguiu lidar bem com os
caprichos do jogador Al-Saaddi Gaddafi, filho do ex-ditador Muammar Gaddafi, e
com passagens posteriores (e desastradas) pelo futebol italiano. Seu último
trabalho como treinador foi pelo Napoli, mas não teve sucesso, estando à frente
da equipe napolitana por apenas 10 jogos. Aposentado, passou a ser
comentarista. Mas já negociava um retorno como técnico. Segundo algumas fontes,
seu retorno seria comandando a seleção do Guiné-Bissau. Estudioso, também deu
aulas em universidade, de teoria, tática e ensino do futebol.
Muito
querido no meio futebolístico, teve seu corpo velado em dois locais antes de
ser enterrado em Lipari. Em Genoa, onde foi homenageado por mais de 10 mil
torcedores, e depois no estádio Giovanni Celeste, do Messina, com a presença de
3 mil torcedores. Ao lembrar do ocorrido, Giovanni Porcella, testemunha mais
próxima, diz ter se sentido completamente impotente diante daquela situação.
Domenico Ravenna, um dos jornalistas presentes disse: "Eu pensei que ele
estava brincando. Pensei que ele queria provocar, fingindo que estava durmindo
enquanto Preziosi falava. Ao invés disso, ele estava morrendo".
Scoglio
também era um grande pensador do futebol. Ao criticar o futebol italiano nos
anos 90, disse que "a ânsia do resultado excluiu a paciência, acabou com a
capacidade de programar, decretando uma aceleração dos piores aspectos do
futebol: a obrigação pelo resultados, os altos custos e salários e a fuga da
realidade". Pão-duro, talvez pela pobreza que passou quando criança,
dormia no carro para não usar o dinheiro que o clube dava para pagar as
hospedagens. Um personagem folclórico, como tantos outros do mundo do futebol.
Chamava seus jogadores de "bastardos", como se filhos adotivos
fossem. E tinha frases impagáveis, como em geral, os bons personagens tem.
"Eu
não faço poesia. Eu verticalizo"
"Às
vezes penso que Cristo é rossoblú"
"Eu
não comando os jogadores. Eu os guio"
"A
vitória não me dá grandes emoções. Mas eu odeio perder. Quando perco me torno
uma besta e em casa brigo com a mulher"
"Sou
um treinador de estrada. Um pouco 'prostituta' "
"O
vermelho e azul estão sob a pele. Não é exagero nenhum quando digo que o Genoa
é uma das 10 maiores equipes da Europa historicamente"
"Eu
sou diferente porque eu não acompanho o rebanho. O sistema te traz
alienação"
***
Texto
publicado originalmente em 6 de maio de 2015.
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