Confesso
que vasculhando em meus arquivos, sinto uma pontinha de inveja dos mais
antigos. O futebol das primeiras décadas do século XX deveria ser mais lento,
com mais chutões para frente e outras coisas que abominamos atualmente. Mas não
dá pra negar que há um charme grande em tudo isso. Gostaria de ter vivido essa
época. Especialmente no Rio de Janeiro. E a história que contarei hoje
aconteceu na ainda capital do país no ano de 1927. O futebol já era um dos
principais esportes da cidade. E Flamengo e Vasco já possuíam uma certa
rivalidade, especialmente por acontecimentos no remo, modalidade bastante
popular na época. Mas foi nesse ano que a relação conflituosa entre
flamenguistas e vascaínos ganhou de vez os gramados.
Na
edição do dia 1º de outubro de 1927, o Jornal do Brasil realizou em parceria
com a Água Mineral Salutaris, um concurso
para eleger o time mais – atenção para a grafia - symphatico do Brasil.
Curiosa prepotência, já que apenas o cidadão fluminense poderia votar (apesar
de que, de acordo com o jornal, foram recebidos votos até de Minas Gerais e
Espírito Santo). O concurso teve votação entre o dia 4 de outubro a 30 de
dezembro de 1927, e a votação era realizada através de um cupom que vinha na
seção esportiva do Jornal do Brasil ou no rótulo da água mineral, e deveria ser
entregue na sede do diário. A apuração seria semanal e os resultados parciais
sairiam na edição do sábado. O clube vencedor levaria o troféu de um metro e
meio de altura banhado em prata.
O favoritismo
pela premiação era do Vasco. Com forte presença entre comerciantes e
jornaleiros, em sua maioria portugueses, a mobilização para ficar com o troféu,
que ficou exposto na Joalheria La Royale, na Avenida Rio Branco, era grande. No
Flamengo, as coisas também não eram diferentes. O concurso fez com que ambos os
clubes brigassem voto a voto. O time da Colina liderava as parciais até os
últimos instantes. Foi quando uma ação sagaz de torcedores flamenguistas
decidiu de vez a parada. Disfarçados de vascaínos (bigode, botões do Vasco na
lapela e até sotaque aportuguesado), esse grupo recebeu os votos para o Vasco,
e ao invés de entregar para a apuração, despejou tudo nos vasos sanitários do
Jornal do Brasil. Quando os vasos entupiram, o jeito foi jogar o restante no
poço do elevador do prédio.
Em
entrevista ao site Globoesporte.com, Fernandinho, primeiro goleiro profissional
da história do Flamengo, relembrou o ocorrido. Na época, Fernandinho tinha
apenas 14 anos. "Eu participei. Participei com muitas pessoas que não
existem mais. Na época, ali na avenida Rio Branco com a São José, estava tomada
por torcedores do Flamengo. Tinham muitos vascaínos lá também. Eles acharam que
iam ganhar, pois tinham muitos taxistas, jornaleiros e padeiros que ajudaram.
Mas o Flamengo ganhou", conta. E é por conta dessa vitória que a alcunha
de "O Mais Querido" ganhou força entre os rubro-negros.
De
acordo com a apuração final, foram contabilizados 736.282 votos. O Flamengo
venceu com 254.850 votos, enquanto o Vasco recebeu 183.742. A virada
flamenguista foi destaque até mesmo em jornais concorrentes, como o Rio
Sportivo, que estampou na capa o resultado do concurso. O Vasco também recebeu
um troféu pela segunda colocação. Posteriormente, o Jornal do Brasil realizou
uma cerimônia de entrega, com a presença da renomada atriz e cantora Margarida
Max (a moça da foto abaixo).
Curioso
notar o restante do ranking. Em ordem, America, Villa Isabel e Modesto,
apareciam à frente do Fluminense. Logo atrás do Tricolor das Laranjeiras aparecia
o São Cristóvão e em apenas oitavo lugar, o Botafogo (ainda antes da fusão).
Diversas outras agremiações, a grande maioria delas extintas, também foram
citadas.
Embora
o valor esportivo da Taça Salutaris seja praticamente nulo, o troféu tem lugar especial
na galeria de conquistas do Flamengo, pois muito antes de se tornar um fenômeno
de massa, a torcida flamenguista já mostrava sua força, e também astúcia.
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Texto publicado originalmente em 28 de dezembro de 2016 no blog Escrevendo Futebol.
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