Em
2011, a Líbia via o regime de Muammar Gaddafi sucumbir. Como era de se esperar,
a queda do ditador trouxe os mesmos males dos quais padecem outras nações que,
digamos, receberam uma "dose de democracia ocidental". O país vive
atualmente* uma guerra civil, e está retalhado politicamente, dividido
basicamente em quatro grandes facções: o Parlamento Líbio, governo
internacionalmente reconhecido, apoiado pelo Exército Nacional, pelo grupo
paramilitar Brigadas de Zintan e por países como Estados Unidos e Rússia; o
Novo Congresso Geral Nacional, formado pelos derrotados nas eleições de 2014 e
ligado a grupos paramilitares como a RSF, do Sudão e milícias étnicas como os
Tuaregues; o grupo jihadista Conselho da Shura de Revolucionários de Bengazi; e
o mais famosos grupo terrorista da atualidade, o Estado Islâmico.
Nos
42 anos à frente do poder, Muammar Gaddafi colocou a Líbia como um dos países
de maior IDH da África e chegou a deixar o país com a menor dívida pública do
mundo. Entretanto, perseguiu, torturou e matou oposicionistas, atuou em
diversos conflitos no continente africano de maneira contraditória, concentrou
as riquezas da nação em suas mãos e mais recentemente, durante o conflito que o
derrubou do poder e o assassinou, cometeu diversos crimes contra a humanidade
(vale salientar aqui, realizados também por facções contrárias ao ditador, e
por soldados da OTAN, a Organização do Tratado do Atlântico Norte). Mas a
principal marca de Gaddafi, ao menos para nossa cultura pop, era sua
excentricidade. O dinheiro e o poder são ingredientes perfeitos para os mais
bizarros e curiosos personagens. Não seria diferente com a família Gaddafi, e
isso alcançou também o futebol, que é onde queríamos chegar com essa rápida
contextualização da política líbia.

Na
maravilhosa era do Youtube, podemos ver as qualidades de Saadi como jogador.
Sinceramente, a não ser que os outros jogadores não fizessem nada quando
jogassem contra ele, até que não aparentava ser tão ruim, ao menos para os
padrões líbios.
Playboy,
curtia muitas de suas férias na paradisíaca Malta e em junho de 2000 assinou
com o Birkirkara, com o objetivo de jogar a Champions League. Por algum motivo,
Saadi sequer vestiu a camisa do clube maltês. Mas ele continuaria a almejar o
sonho de atuar em uma grande equipe. E conseguiria, certamente, graças a sua
atuação nos bastidores da bola, em especial no futebol italiano. Vamos voltar
na história e lembrar a ligação entre Líbia e Itália. O país africano foi
colônia italiana entre 1911 e 1947, e com Gadaffi, ambos se tornaram
importantes parceiros comerciais.
Sua
influência era gigantesca. Em 2002, convidou dirigentes de vinte federações e
associações da África para um encontro em que agraciou cada um deles com 4
milhões de dólares. Tudo isso para ajudar o suíço Jospeh Blatter, presidente da
FIFA, a manter seu "carisma" com o futebol local, de acordo com o
livro Jogo Sujo, do jornalista inglês Andrew Jennings. A relação com os donos
do jogo era tamanha, que a Líbia chegou a apresentar uma candidatura conjunta
com a Tunísia para sediar a Copa do Mundo de 2010, mas ambos os países
desistiram após a FIFA afirmar que não consideraria candidaturas conjuntas.
Jogando pelo Al Ittihad, conseguiu marcar partidas contra gigantes europeus
como o Barcelona e a Juventus. No dia 2 de abril de 2003, o Més que un club
goleou o Al Ittihad por 5 a 0 diante de 15 mil pessoas no Camp Nou.
Também
em 2002, assinou com a Lazio, clube no qual já havia participado de treinos, um
acordo de cooperação com a Federação Líbia de Futebol e comprou 7% das
operações da gigante Juventus por 17 milhões de euros. "Desde que nasci
sou fã da Juventus, e isso só ficou mais forte com os fantásticos jogadores que
se seguiram a Platini: Roberto Baggio, Alessandro Del Piero e Zinedine
Zidane", disse em entrevista na época. Tentou, tempos depois, uma
aproximação com o inglês Liverpool. Amigo de Maradona, foi treinado durante três
anos pelo ex-velocista Ben Johnson, aquele mesmo, pego no doping durante as
Olimpíadas de 88, em Seul.
Conseguiu
também levar a decisão da Supercoppa italiana para Trípoli. No Estádio 11 de
junho, a Juventus, time do coração de Saadi, venceu o Parma por 2 a 1, com dois
gols de Del Piero. Na festa do título, claro, lá estava Saadi aparecendo em
todas as fotos. Não fica difícil relacionar a produção de petróleo líbia, uma
das principais do mundo, com a Fiat, proprietária histórica do clube
bianconero.
Em
2003, Gaddafi realizou com o Al Ittihad, uma viagem ao Brasil. Enfrentou uma
equipe de reservas do São Paulo, no Morumbi, no dia 27 de março, e empatou por
1 a 1, com direito ao craque Careca como camisa 9 de seu time. Claro que
imaginamos que o time tricolor tenha tirado o pé. Dill abriu o placar de falta
e Harei empatou para o time líbio. Saadi ainda pôde conhecer a estrela Kaká. O líbio afirmou à imprensa que "seria muita pretensão querer
jogar no São Paulo" e convidou o Tricolor paulista para um amistoso em
Trípoli, naturalmente, jamais realizado. A imagem é uma reprodução do
jornal Estado de São Paulo.
Ainda
em 2003, fechou com a tradicional equipe italiana do Perugia, que fez naquela
temporada sua última participação na Serie A. O presidente do grifo na época
era o fanfarrão Luciano Gaucci. A negociação contou inclusive com um dedo do
então primeiro-ministro italiano e dono do Milan, Silvio Berlusconi, aliado
político e econômico de Muammar Gaddafi.
A
maluquice ganhou as manchetes de todo o mundo, mas o retorno esportivo foi
nulo. Saadi estreou em um jogo oficial apenas nove meses após a assinatura de
contrato. Primeiro porque o técnico Serse Cosmi tinha bom senso. Depois, quando
passou a ser relacionado, foi pego em um exame antidoping com traços de
Nandrolona (uma espécia de anabolizante) no sangue. Seu único jogo foi um duelo diante da
Juventus (de novo a Vecchia Signora). Mas o jogador entrou apenas nos 15
minutos finais. Ao menos o Perugia manteve a vitória por 1 a 0. Saadi ainda
ficou na equipe pela temporada seguinte, porém, sem entrar em campo.
Em
2005, acertou com a Udinese, que jogaria os play-offs da Champions League. Mas
além de não ter atuado pela competição continental, jogou apenas 11 minutos de
uma partida contra o Cagliari, já no final da temporada. Na
temporada 2006-07 foi a vez da Sampdoria fazer parte da história do
jogador-ditador líbio. Atuou em apenas uma partida amistosa contra a Spezia.
Foi sua última partida como profissional.
Segundo
oposicionistas, Saadi também mostrou seu lado déspota em diversas ocasiões
esportivas. Relatos afirmam que em 96, na final da Copa da Líbia, após o Al
Ahly de Benghazi ter conquistado o título, homens do exército líbio dispararam
contra a torcida. Vinte pessoas teriam morrido. A cidade de Benghazi, e mais
especificamente o clube, era historicamente oposicionista do regime de Gaddafi,
e não são poucos os que acreditam em uma conspiração de Saadi para acabar com a
equipe, que teria tido troféus, medalhas, e até parte de sua infra-estrutura
destruída sob ordens diretas do jogador e dirigente durante os anos 2000.
Além
disso, foi acusado de ter torturado e assassinado o ex-jogador e então
comentarista de futebol Bashir al-Riani. Até mesmo rumores sobre sua sexualidade
foram levantados. Um ex-jogador do Al Ahly, Reda Thawargi, alegou anos depois
ter sido preso por negar as investidas de Saadi. A suposta bissexualidade de
Saadi teria enfurecido o líder Muammar, de acordo com diplomatas americanos em
documentos revelados pelo Wikileaks.
Mesmo
assim, em 2011, comandou as Forças Especiais da Líbia. Após a morte de seu pai,
tentou se refugiar no México, mas não conseguiu. Passou três anos no Niger,
onde foi capturado em março de 2014. Na ocasião, após a extradição, o governo
líbio afirmou que iria "tratar o acusado de acordo com os princípios da
justiça e das medidas internacionais que regem o tratamento dos detidos".
Em 2015, um vídeo foi divulgado mostrando Saadi e outros presos sendo
torturados. Certamente, não foi o final de carreira que Saadi imaginou para si.
***
Texto
publicado originalmente em 14 de fevereiro de 2016 no blog Escrevendo Futebol.
0 comentários:
Postar um comentário
Deixe seu comentário